Esse documento não diz tudo de Aparecida, mas pode provocar, da parte de outros sujeitos, eclesiais ou não, novas leituras que ajudem a entender o significado, o alcance, as heranças e os desdobramentos da V Conferência.
Geraldo Luiz De Mori, sj*
Vários encontros e seminários foram e estão sendo realizados para comemorar os 15 anos da Vª Conferência da Igreja latino-americana e caribenha. Ao longo desse tempo, muito se escreveu sobre o que aconteceu entre 13 e 31 de maio de 2007 e sobre o Documento que então elaboraram os bispos do continente. Nesse contexto, a teologia é provocada a fazer um balanço do que ocorreu nesse evento eclesial e do documento nele elaborado. Dentre os textos escritos nessa perspectiva, destaca-se o da Presidência do CELAM: “Nossas dívidas com Aparecida. Balanço 15 anos depois”. As 24 páginas desse Documento, divididas em sete partes, oferecem, na perspectiva da liderança do principal órgão representativo do episcopado da região, uma leitura sintética sobre a V Conferência. Esse documento não diz tudo de Aparecida, mas pode provocar, da parte de outros sujeitos, eclesiais ou não, novas leituras que ajudem a entender o significado, o alcance, as heranças e os desdobramentos da V Conferência.
Introdução
O texto começa recordando as tarefas que a atual Presidência do CELAM recebeu nos acordos da Assembleia Ordinária de 2019: construir uma nova sede, reestruturar os estatutos do organismo e organizar a VIª Conferência. As duas primeiras tarefas foram cumpridas, mas, quando se iniciaram as tratativas para a terceira, o Papa Francisco provocou o organismo articulador do episcopado do continente a realizar uma Assembleia Eclesial, pois, segundo ele, Aparecida ainda não tinha sido encarnada nas Igrejas da região. A Igreja latino-americana e caribenha tinha tarefas “pendentes” e “dívidas” com Aparecida. O Documento da Presidência do CELAM pretende recolher os principais “aportes” da Vª Conferência, as “dívidas” das Igrejas da região com relação a Aparecida e os novos desafios que depois emergiram e são levantados hoje.
Como foi possível Aparecida?
Na segunda parte, faz-se memória dos passos dados pelo CELAM para a realização da V Conferência: as assembleias do organismo em 2001 e 2003, nas quais foi discutida a proposta, determinada em grande parte pelas “grandes mudanças ocorridas” na região a partir de 1992. Somente em 2004 João Paulo II expressou sua decisão de que o episcopado da região continuasse com a tradição de realização de suas conferências gerais. O texto não menciona, mas havia resistências, por parte de setores do Vaticano, à continuidade dessa tradição, sobretudo depois dos sínodos continentais promovidos pelo Pontífice, todos realizados em Roma, tendo no magistério papal, através das “Exortações Pós-Sinodais”, e não em Documentos dos episcopados continentais, a referência para a ação pastoral em seus contextos. Bento XVI, em julho de 2005, aprovou o tema: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nossos povos Nele tenham vida”. Em outubro do mesmo ano, os cardeais Errázuriz, Rubiano, Hummes e Bergoglio pediram-lhe que o evento fosse realizado num dos países da região e não em Roma e que o Pontífice se fizesse presente. O Papa acolheu o pedido e definiu o santuário de Aparecida como sede da Vª Conferência, a ser realizada em maio de 2007. A partir de então, o CELAM organizou seminários, simpósios, encontros, discutindo temas diversos, que serviram de “insumo” para o “Documento de Síntese”. A ruptura com relação ao uso do método ver, julgar, agir, ocorrida em Santo Domingo, parecia também presente nas conduções do processo. Porém, o Discurso de abertura de Bento XVI, a ação de bispos e teólogos mais afinados com a experiências de Medellín e Puebla, e a condução da comissão de redação, sob a presidência de Bergoglio, tornaram realidade um consenso que parecia “impossível”.
O contexto histórico
Na terceira parte são apresentadas algumas das características do período que antecedeu a Conferência de Aparecida. Por um lado, diz o texto, percebe-se, no período que se seguiu à segunda guerra mundial, um grande otimismo, que, do ponto de vista eclesial, teve forte impacto no concílio Vaticano II e em sua imediata recepção. Por outro lado, a partir da rebelião dos estudantes, em 1968, inaugurou-se um tempo marcado por crises, como a do petróleo, na década de 1970; a da dívida externa, na década de 1980; a da queda dos socialismos reais e do advento da globalização, sob o influxo do neoliberalismo, na década de 1990, que provocou, na América Latina e no Caribe, a crise da sustentabilidade ecológica, o aumento da exclusão e da violência, a relativização dos valores éticos, a perda da identidade cultural e subjetiva, a crise da solidariedade. Nesse contexto, a entrada no novo milênio, mais que determinada pela esperança na realização das utopias propostas pela razão moderna até então, teve início uma crise civilizatória sem precedentes, com impacto em todas as instituições. Foi nesse período, marcado por uma “mudança de época”, que aconteceu Aparecida.
Principais contribuições de Aparecida
A quarta parte do Documento da Presidência do CELAM recorda que o evento de Aparecida foi “um momento privilegiado” de escuta dos apelos que o Espírito fazia à Igreja “através da realidade, que clama por um reencontro fecundo com o evangelho de Jesus Cristo e por novas formas de expressão eclesial”. Sua principal contribuição, continua o texto, foi ter “recuperado o sentimento de uma igreja continental com características próprias, portadora de um caminho original e com capacidade de oferecer contribuições substanciais à Igreja universal”. A essa contribuição deve-se acrescentar a retomada e a renovação das opções das Conferências anteriores, que fizeram com que a Igreja continental centrasse sua “missão na evangelização da cultura”, se preocupasse com o “desenvolvimento humano integral, ambiental e socialmente sustentável”, assumisse “a opção preferencial pelos pobres”, buscasse “novas formas de fazer política”. Outro tema importante, o da conversão pastoral, tem como base a dimensão comunitária da fé, que leva à superação das leituras intimistas que prescindiam da Igreja para pensar a existência cristã. Nessa perspectiva, o anúncio de Cristo torna-se central, definindo a perspectiva do discipulado missionário, que leva a Igreja a entrar em um estado permanente de missão, transformando mentalidades e estruturas para que, de fato, se tornem missionárias. A conversão discipular-missionária da Igreja está em função do serviço à vida plena dos povos latino-americanos e caribenhos, resgatando-se assim a relação entre evangelização e promoção humana integral. Tudo o que a Igreja faz está em função de comunicar o “transbordamento da vida, para que o povo possa viver uma vida digna de filhos/as de Deus”. Resgatam-se, nesse sentido, as figuras samaritana e profética da Igreja. Outras preocupações que ainda estiveram presentes na Vª Conferência: a animação bíblica da pastoral, a centralidade da Eucaristia, a renovação da opção preferencial pelos pobres, a necessidade de um estilo pastoral caracterizado pela proximidade, a importância de se reforçar as estruturas eclesiais para que sejam efetivamente missionárias, a intenção de se promover e acompanhar o compromisso da Igreja cristã na vida pública.
Dívidas, dificuldades e desafios atuais
A quinta parte indica cinco tarefas que, 15 anos depois de Aparecida, segundo o Documento do CELAM, continuam pendentes na Igreja latino-americana e caribenha:
‘Coisas novas’ surgidas depois de Aparecida
A sexta parte do Documento da Presidência do CELAM apresenta dez questões surgidas depois da Vª Conferência ou que ganharam novos contornos nos últimos anos:
Convite
O texto termina afirmando que Aparecida segue sendo um “farol” que ilumina as opções pastorais da Igreja latino-americana e caribenha. Daí a importância de deixar que o Espírito a ajude a aprofundar a herança da Vª Conferência e a leve a aventurar-se no enfrentamento dos novos desafios. O texto propõe ainda a releitura do Documento de Aparecida à luz das orientações da Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe, como convite a renovar a resposta discipular missionária do continente.
Enquanto texto emanado da Presidência de um organismo tão importante como o CELAM, que durante décadas esteve sob a mira e o controle de grupos mais afinados com o centralismo romano e sua busca de controlar a novidade que havia emergido do Vaticano II, o Documento aqui apresentado é corajoso. Recolhe boa parte dos conteúdos de Aparecida que se tornaram centrais no magistério de Francisco, aponta os elementos não recebidos da V Conferência no seio dos episcopados e das Igrejas locais, apresenta a evolução social, cultural, religiosa e eclesial ocorrida no continente nos últimos 15 anos e as principais questões trazidas pela Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe, num claro gesto de recepção dessa nova instância de sinodalidade experimentada pela Igreja da região. Como texto de balanço, oferece muitas pistas para voltar a Aparecida e, como o “escriba que se torna discípulo do reino dos céus”, tirar do tesouro que ela descobriu, “coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Oxalá os episcopados e as lideranças eclesiais do continente tenham a mesma coragem.
* Geraldo Luiz De Mori, SJ, professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)
Fonte: https://pascombrasil.org.br/o-milagre-de-aparecida-15-anos-de-aparecida-um-balanco-em-sinodalidade/